quinta-feira, 7 de abril de 2011

Muitos Anos de Vida

Você acorda, torcendo para estar morto. Mas, outro dia lhe é dado. Presente de grego. Podia ter morrido dormindo, faria pouca diferença. Você levanta e arruma sua cama no quarto de seu neto. Você não deveria estar ali. Seu neto não queria que você estivesse ali. Mas você está. Sua filha insistiu em alugar a casa que você sempre viveu com sua falecida esposa. É melhor o senhor ficar lá em casa, vai ter companhia e o dinheiro nos ajuda com as despesas. Agora você é um intruso. Ela se arrependeu da idéia. Mas se acostumou com o dinheiro. Você não tem escolha, a outra saída é um asilo público. Você chora, no banheiro, todo dia de manhã antes dos remédios. São vários. A aposentadoria de toda sua vida de trabalho só dá para pagar os malditos remédios. Você depende de sua filha e de seu genro que te olha atravessado ao cruzar com você de manhã de chinelos no corredor. Um bom dia que mais parece um morre-logo-velho. Sua filha arrependida de, às vezes, desejar a sua morte te faz algum esporádico carinho. Mas você sabe que é um estorvo.

Para que não lembrem que você existe, prefere ir para rua logo cedo depois do café. A rua é grande, mas não te cabe. Mas em casa você vira um piano que ninguém mais quer tocar. Sem música é só um trambolho ocupando espaço. Pesado demais para se livrarem. Deixa que o cupim come. Na rua procura amigos. Eles morreram há um tempão. O amor de toda sua vida também. Eram felizes em sua casa, velhos, mas se faziam companhia. Entendiam-se. Um sabia o que o outro estava passando. Mas agora, só, pede a Deus pela morte. Ela não vem. Você anda pelas ruas sem lugar para ir. Ninguém te cumprimenta, ninguém te vê passando. Você senta no banco de uma praça e joga farelos para os pombos. Eles são mais felizes que você. Você vê as horas passarem como séculos. Dos 15 aos 30 pareceram segundos. Agora velho, os minutos são anos. A vida mudou e você é o mesmo, desejando as mesmas coisas que já não existem mais. O mundo nada mais oferece para você. O rádio não toca aquelas belas canções. Palavrões insultam seus ouvidos. Os bondes não existem mais e os ônibus não param quando você faz sinal. Você é indesejado. Encostar para um velho, que nem paga passagem, entrar. Ele pega o próximo. Não entendem seu cansaço. Seus ossos doem. O que adianta estar vivo se você se sente pior do que um cadáver.

A fome chega junto com a dor na coluna. Almoçar em casa não é a melhor opção. Comer na rua muito menos. Esconde a fome no meio de tantas outras dores. Você trabalhou a vida inteira, seu maior medo era virar um esmoler. Veja você: quase igual a um mendigo. Mendigo que você sempre teve pavor de se transformar. Sem casa e sem dinheiro. Com fome e exausto. Vagando pelas ruas da cidade. Se olha num espelho, não se reconhece. Parece um pobre faminto clicado pelo Sebastião Salgado. Você se arrepende de não ter chutado o balde toda vez que teve vontade. Você sabe que sua hora de partir dessa para outra vida, passou. Você está fazendo hora extra no mundo. A morte que não chega mesmo você desejando. Suicídio? Não. Já encarou tantas coisas difíceis... não vai se matar agora, aos 45 do segundo tempo. Espera o Juiz Celestial apitar o final do jogo. Mas ele quer prorrogação. Você olha para céu, quer encontrar o mundo que perdeu. A vida que ficou para trás.

 
À noite você volta para casa, quer dormir. Seu neto joga vídeo-game no quarto com os amigos. Sua filha vê novela na sala. Você lembra de sua querida companheira e uma lágrima brota nos entalhes de sua cara. O sono te vence ainda na sala e você vira um velho babão. Sente vergonha, mas não tem para onde ir. Te esquecem na poltrona e quando você acorda, de madrugada, suas costas estão em frangalhos. No escuro você arruma sua cama enquanto reza para não acordar. Mas você acorda e tudo começa de novo. Arruma a cama, remédios e lágrimas. Toma café e rua.

Em um beco estreito e comprido vê alguns pombos - talvez sejam rolinhas - não distingue mais os dois (catarata). Você vê um bêbado vindo da outra extremidade. Só você e ele na estreita travessa. Você pára. Vai alimentar as aves. Ele procura algo no bolso. Ele passa por você e não te vê. Olha os pássaros. Nem o mendigo bêbado te nota. Agora você sabe: está invisível. Invisível não, você morreu há muito tempo... há muito tempo atrás.

3 comentários:

Arte e Cultura Popular disse...

Por incrivel que possa parecer esse texto me tocou muito estou vivendo, um momento muito dificil com meu velho duente e volta e meia ele diz minha velha estou sendo um estorvo, meu filho me desculpe o constrangimento que lhe causei quando teve que me limpar me dar banho,minha irmã teve que largar o emprego pra cuidar deles até porque minha velha também passa por dificuldades de saúde a idade chega e ela pesa digo eu com os meus 48.
Quantos velhinhos se identificariam com esse texto mais quem foi filho querido que dividia bolinho de chuva não é ruim assim tem carinho e respeito pór estar vivo. "Meu Pai grande quizera eu ter sua raça pra contar,trazido lá do longe com sua paz"...
( Miltom Nascimento )

Angela Nobre disse...

Foi forte...
Difícil não chorar. Deve mesmo ser perfeito em terapia familiar.

Beijos.

Flor Baez disse...

Nossa, Cezar! Que texto é esse!
Muito maravilhoso, muito triste, e nos faz passear pelo futuro que nos espera.

Sem palavras para esse texto! <3

Saudades,
Raisa