quinta-feira, 10 de março de 2011

O Senhor do Deserto


O vento que devia passar dos 80 km/h, a quantidade de areia jogada contra a viseira do meu capacete, o cansaço e o calor que nenhum termômetro conseguiria registrar. Qualquer um desses fatores. Ou todos. Foram responsáveis por eu estar sentado agora em meu capacete com estes mapas que já não me dizem nada em pleno deserto líbio. Estamos em 1977. Meu nome é Thierry Sabine.

Desde pequeno tive certeza que era um realizador. Não me contentava em esperar que as coisas acontecessem. Eu tinha que ir buscá-las. Ficava ansioso com a necessidade de realizações. No esporte me encontrei, disputando cada prova com a intenção de vencer. Vencer. Conquistar o objetivo almejado. E quando encerrado, superar a mim mesmo. Quebrando meus recordes. Foi com estes sentimentos explodindo em meu peito aos 14 anos de idade que disputei vários e vários torneios hípicos, vencendo a maioria.

Mais tarde continuei atraído por cavalos. Mas desta vez, pelos cavalos de potência de um motor. A velocidade era meu desafio. A habilidade pessoal unida a uma poderosa máquina o meio de alcançar meus limites. E nada melhor para desafiar nossos limites que um rali. Onde homem, máquina, velocidade e um senso de direção que muitas vezes é intuitivo fazem do fim de cada etapa uma vitória.

Mas na verdade foi sempre o homem que me fascinou. Nossa capacidade de superação me surpreende. Vejam vocês agora, por exemplo, minha moto equipada com o que há de melhor em tecnologia, uma Yamaha XT 500 cilindradas, não agüentou o calor do deserto e não quer funcionar mais. Eu ainda estou aqui. Só. Eu, o sol, o céu e a areia. Caminhando há horas e não encontro, se quer, algum vestígio de civilização. Parece que estou em outro planeta, pois nada se compara ao ar quente deste lugar. Ao cheiro e ao som do vazio absoluto. Da textura e da imensidão do Deserto Ténèré.

Há algumas horas atrás, estava liderando o Rali Abdijan-Nice quando encarei de frente uma duna em movimento. Entrei dentro do vespeiro e cego pela areia e pelo desafio continuei acelerando a moto como um alucinado. Um louco que busca suas metas sem se importar com as conseqüências. Deveria ter sido mais prudente, esperado o monstro passar. Mas não... agora estou aqui... com pouca água, perdido, esperando socorro ou a morte.

Os dias passam, o Deserto me encara com um sorriso sacana. Meus pés já não se importam com o cansaço. Ardem na caminhada, autômatos. Não suo... não tenho mais líquido para expelir. Tive a impressão de ouvir o ranger de motores de meus concorrentes. Nada. Eram meus ouvidos fabricando o som que eu gostaria de ouvir. O Deserto tem dessas coisas...

Sem o menor sinal meu corpo desaba como um boneco sem vida na areia ardente.

...

Não sei quantas horas - ou foram minutos - fiquei desacordado. Mas fui despertado por um canto doce feminino, levantei meus olhos e vi ao longe algumas mulheres semi-nuas enterradas da cintura para baixo. Em sua direção parto e elas se movem dentro da areia como se nadassem. Na verdade elas nadam sim. São sereias da areia e vão me atraindo com seu canto para o coração do deserto. E eu sem resistência flutuo pelas dunas que agora ganharam um tom prateado com reflexos coloridos. Não pode ser verdade mas estou indo na direção de um imenso castelo, cercado de plantas que nuca vi de tão rara beleza. Pássaros de várias cores voam em torno do edifício. E um rio, com águas cristalinas, circunda a fortaleza. Engraçado, não sinto sede, só uma vontade danada de fumar.

Um clone de Saint-Exupéry me diz que o “Monseur du Desért” quer me dizer algumas palavras. Só posso estar morto - raciocino estupefato - Sou levado para uma grande sala, dessas que a gente só vê em filmes da Idade Média, parece uma igreja vazia, com vitrais que fazem o sol entrar como raios de arco-íris. E lá no final da imensa catedral, um jovem momo com um sorriso acolhedor. Sinto-me tão bem que nem me preocupo mais se estou vivo, morto, se aquilo é real ou delírio. Relaxo. Sento em enormes almofadas e aguardo ansioso a voz aveludada do simpático paquiderme.

“Fique tranqüilo Thierry. Você chegou onde nenhum homem da terra conseguiu nem mesmo vislumbrar. Aqui é onde se separam os homens dos meninos. E só a garra, a vontade, a raça fazem a diferença entre estar vivo ou morto. Você veio a Terra com uma missão. E esta Missão te levará a morte mas te dará a eternidade. A partir de agora sua vida está intimamente ligada ao Deserto. E você não conseguirá mais viver sem alimentá-lo e ao mesmo tempo desafiá-lo, mostrar ao mundo do que ele é feito e até onde podem ir os homens”

Nada mais precisou ser dito. Naquele momento nascia em meu coração um Rali unindo minha cidade natal com a misteriosa cidade de Dakar. Tendo o Deserto africano como o recheio desafiador no meio. Olhei nos olhos do majestoso monarca e agradeci pela iluminação. Nenhuma palavra mais foi proferida. Apaguei no imenso salão.

...

Acordei na cama de um hospital, com soro, oxigênio, enfermeiros e médicos cercando-me e dizendo-me que fui salvo por um avião que por acaso passava no local três dias depois. Que as equipes já haviam cancelado as buscas. Que era um milagre eu estar ali. E eu nem estava. Estava ainda no âmago do Deserto, conversando com o seu Senhor. Não sei se tudo não passou de uma alucinação pela falta de hidratação. Se foi apenas um sonho de um sono profundo provocado pelo imenso cansaço.

Mas nem isso importava mais. O rali estava completamente desenhado na minha cabeça. E este era meu novo e estimulante desafio. Em um ano conceber o Maior Rali de Todos os Tempos. O mais desejado e o mais temido. O Rali Paris-Dakar aquele que separa os homens dos meninos! “Um desafio para os que vão e um sonho para os que ficam”. Onde sobreviver, já é uma grande vitória!!!!!

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